Imagem: CO-VIVER 2020: Um relato sobre a transformação do espaço de habitar. Desenho da autora, 2020.
Há 63 dias que o João vive no apartamento. Essa afirmação poderia ser óbvia há uns meses, mas nas últimas semanas tornou-se numa situação sem precedentes. A sua rotina e hábitos que antes se realizavam em lugares diferentes, agora concentram-se todos num único espaço: o apartamento que ele partilha com a sua família. Juan, como metade da população mundial, não pode sair à rua. O tempo que passava no trajeto para o seu local de trabalho reduziu-se consideravelmente: de 10 horas por semana a apenas alguns passos até à sala do lado.1 As conversas e reuniões com os seus amigos foram substituídas por uma janela de 46.5×26.2cm de altura que o liga ao mundo real. E a varanda. Sim, esse espaço até agora ignorado nas casas e suprimido em muitas delas pelo desejo desvairado de querer ganhar m2 na casa… O que eles dariam, agora, para voltar atrás!
O apartamento de João transforma-se quase diariamente em milhares de lugares para albergar a vida de 5 pessoas, 24/7:
A sala transformou-se num escritório de trabalho de João durante o dia laboral, em sala de ioga e ginásio ao entardecer ou em cinema que visita com o pai aos fins de semana.
O corredor da casa – até então usado como zona de acesso aos quartos – foi transformado pelo avô de João numa rua temporária para passear 2-3 vezes por dia.
O quarto do João e do seu irmão tem uma cama. Ou duas. Depende do momento do dia. Tem uma mesa. Ou duas. De manhã transforma-se em escritório. À tarde, em oficina de trabalhos manuais e lettering para aquele que usa o baú como mesa ou uma almofada para se sentar no chão. Ele diz que essa postura o relaxa. E algumas noites, torna-se num pub cheio de amigos que sente próximos, mesmo estando longe.
Essa etapa obrigou o João e a sua família a transformar, quase sem se aperceberem, o espaço doméstico onde vivem, propondo um novo conceito: a habitação como processo. Aquela entendida como a soma de decisões e desejos dos utilizadores. Uma transformação da casa – imposta como produto de consumo repetitivo e acabado – através de objetos e ações domésticas realizadas pelos seus habitantes. São os desejos e necessidades do João que desenham a cena de habitar: tornar-se chef ou cabeleireiro durante algumas horas, nutrir o seu espírito cinéfilo, transformar uma divisão num estúdio de fotografia2 ou num ginásio…
A arquitetura residencial deve permitir-nos transformar o nosso ambiente para o adaptar às nossas necessidades e não – como já fazemos há muito tempo – adaptar-nos a um espaço resultante da construção repetitiva e acabadas como forma de construir uma cidade densa que não reflete a humanidade daqueles que nela habitam. Talvez esta etapa nos obrigue a repensar o lugar onde moramos. A transformá-lo – minimamente – num lugar desejado. E demonstrou-nos o que, para muitos, era evidente há muitos anos: a arquitetura residencial precisa de uma revisão. Ou duas.
Texto traduzido por Inês Veiga.