A cidade é uma construção coletiva, cultural e social, que originou reflexões a partir de disciplinas muito diversas ao longo da História. Autores como Lewis Mumford1, fotógrafos como Nigel Henderson2, professoras como Olga Adams3 e arquitetos de referência como Aldo Van Eyck foram responsáveis, após a Segunda Guerra Mundial de um tema até então pouco considerado: a criança no meio urbano. Anos mais tarde, Colin Ward escreveria uma das obras de referência em relação a este tema, The Child in the City (1978), onde analisa como as crianças usam o espaço urbano e como pode a cidade melhorar ou piorar as condições de vida da infância. No entanto, quando, em 1996, o pedagogo e professor Franscico Tonucci publica a sua obra A Cidade das Crianças, houve alguma coisa que mudou: a criança já não se limita a sair à rua. Pela primeira vez na infância do ser humano perdeu-se a primazia do brincar livremente, a liberdade do desfrute lúdico sem vigilância, e a pedagogia mede as consequências no desenvolvimento4.
Apesar dos 20 anos que se passaram, a análise urbana proposta no texto continua em vigor: a especialização e a setorização como princípio de marginalização da vida urbana dos cidadãos mais “frágeis” (idosos, crianças, pessoas com deficiências …), a gentrificação e o ‘esvaziado’ dos centros urbanos, a falta de segurança, a hegemonia do carro face ao pedestre e o espaço público como objeto de consumo. Aliás, uma grande parte destes temas aparece em O Direito à Cidade de Lefaivre: o ser humano tem necessidades especificas que não satisfazem os equipamentos comerciais e culturais e que os urbanistas não têm em especial consideração. Referimo-nos às necessidades criadoras, de obra) […] de imaginação e de atividades lúdicas. […] Não serão estas umas necessidades urbanas especificas de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontros, lugares nos quais o intercâmbio suplantaria ao valor da troca, ao comércio e ao beneficiário?5
Como medida de melhoria urbana, Tonucci propõe incluir a criança tanto nas decisões urbanas como na realização das propostas, para que haja uma visão independente sobre os espaços que garanta que a economia não prevaleça sobre os demais valores. Considera também apropriado que a criança seja o novo parâmetro urbano já que “uma cidade adequada à infância é uma cidade adequada para todos”.
A proposta do seu livro, eminentemente prática, teve uma enorme divulgação em Itália, em Espanha e na América-Latina, e, neste último caso, especialmente em Argentina6. A sua implantação, adverte Tonucci, é mais simples em cidades pequenas (até 150.000 habitantes)7.
Na nossa península, Pontevedra (82.549 habitantes) representa o apogeu deste projeto. O seu sucesso deve-se em grande parte à coragem de abordar decisivamente um dos aspetos mais complexos da proposta: um plano de mobilidade urbana que entende a função social e recreativa da rua para além do tráfico. Estratégias como a traffic calming ou a dissapearing traffic e estúdios como o Livable Streets8 determinaram uma grande parte das decisões tomadas: reduzir o trânsito tanto quanto possível eliminando a circulação, limitar a velocidade a 30 km/h através do próprio projeto urbanístico, regular o estacionamento com medidas de controlo horário, ampliar os passeios e recuperar praças e ruas para o peão, tornando-as totalmente acessíveis9. É graças a este meio ameno que foi possível fazer com que a cidade voltasse a ser uma realidade para as crianças, possibilitando-as de brincar na rua, de ir sozinhas para a escola. Existe também um Conselho Infantil, a partir do qual podem contribuir com opiniões e fazer propostas, garantindo o ponto de vista da infância, mas quando terminam, regressam às suas ruas habitadas que lhes oferecem um presente que nunca se deveria ter perdido: o de poder brincar livremente10.
Texto traduzido por Inês Veiga