“Toma Arquitectura Alpina!”. É assim que, em 1917, Bruno Taut dá a conhecer ao seu amigo e mentor Adolf Behne o fascinante tratado no qual sonha converter a Terra numa grande obra de arte1. Com o objetivo de combater o aborrecimento generalizado — segundo ele, a causa mais profunda da guerra — Taut democratiza a natureza para grande gozo das massas, transformando-a num monumento global para a paz. Tafuri afirmava que a exaltação da natureza como “utopia regressiva”, própria dos tardio-românticos, escondia um segredo e um profundo sentimento de culpa2; mas o idealismo de Taut não é só uma nostalgia por uma ligação perdida. Antes de desatar a construir catedrais como estrelas, o arquiteto alemão abraça a terra com estas palavras: “O amor é imaginação. O amor e a terra são a imagem que temos dela”.
A mistura de amor e culpa que Arquitetura Alpina compila encontra-se hoje no consumo global de experiências naturais, que está em altas com a tomada de consciência da crise ambiental. As pedras coloridas que Taut insere nas cristas da Cadeia de Monte e Gelo do Monte Rosa encontram um eco nas filas de turistas que esperam a sua vez para tirar um selfie no cume mais alto da Terra. Essa natureza espetacular e irrepetível que estimulou a imaginação política de Taut é rotulada como imagem comercializável com idêntico objetivo: encarnar o sonho “elevado” de um mundo melhor e, ao mesmo tempo, canalizar na sua excecionalidade a ansia de “diferenciação” típica da cultura de massas.
Responder à demanda de entretenimento e especialidade que acompanha o avanço da globalização é o trabalho assumido pela arquitetura icónica do “novo monumentalismo” que emergiu nos anos 903. Arquitetura Alpina antecipa-a até certo ponto, mas adverte um vazio que lhe escapa. Ao apostar pela arquitetura como instrumento privilegiado para Gestão do Todo4 como interior total, Taut advertiu a relevância de gerar um equilíbrio interno cuja urgência se expressa hoje no consumo mediático de experiências “naturais”. Também se apazigua através do mesmo: há muito tempo que a renovação permanente das superfícies do real para fazer credível o curso beneficioso do avanço tecnológico encontra um melhor aliado na fachada verde que no curtain-wall. O verde, no entanto, já não é suficiente. Os saturados e viscosos fluxos do tecno-capitalismo cultural precisam de contínuas “doses” de fantasia que não só bombeiem, mas, além disso, ocultem os desequilíbrios estruturais que os acompanham. Tafuri chamava “ideologia da inovação permanente”.
Um projeto como o Centro de Serviços e Passageiros do Porto de Kinmen podia então ser visto como tentativa de reposicionar a arquitetura como serviço semântico nos fluxos globais do capital, ameaçados pela circulação de imagens de uma natureza explorada e degradada: ao repor a mesma no imaginário como objeto de desejo, tudo aparenta estar controlado. Certamente, o “monumentalismo renovado” de Ishigami evoca a Arquitetura da Montanha de Taut, mas a imaginação simbólica aqui está ao serviço de algo que não seja o mercado da experiência ostensiva? Arquitetura Alpina pode ser visto então como modelo, não para construir um mundo novo, mas para compreender um problema. A complexa relação que explicita entre equilíbrio e renovação — amor e culpa — convida a revisar as condições, consequências ou opções para uma arquitetura implicada na crise da habitabilidade.
(Continua…)
Texto traduzido por Inês Veiga.