A crítica de qualquer disciplina, ou da arquitetura neste caso, é um instrumento poderoso na medida que focaliza e hierarquiza o que observar e o como observar, e concentra-o – ou deveria fazê-lo – num discurso consistente que conclui uma explicação cuja primeira eleição foi falar dessa obra e não de outra. A reflexão sobre a função na sociedade, a revisão da sua influência na definição de disciplina, motiva esta pequena reflexão; uma crítica à crítica estruturada em quatro partes das quais esta, que fala da obra como objeto primário da crítica, é a primeira.
Certo arquiteto pertencente a um atelier espanhol influente contou-me a seguinte história: Isaac Asimov, que normalmente completava a sua economia de escritor com conferências propostas por diversas instituições espalhadas por toda a geografia dos Estados Unidos da América, certa tarde, encontrou-se sem nada que fazer numa média cidade de desconhecido nome1. Ao passear sem um rumo definido, encontrou uma conferência sobre a sua obra e decidiu assistir à mesma. Chegado o momento das dúvidas e perguntas, Asimov pede a palavra e discorda publicamente dos argumentos do orador, que responde que o facto de ser o autor da obra não significa obrigatoriamente que tenha o conhecimento suficiente para falar sobre a mesma com perspetiva.
O arquiteto que me contou esta história mantém uma postura crítica sobre a sua obra, que, devido ao amor por um trabalho bem feito, adquire um carácter fortemente instrumental. A crítica proporciona um contexto, uma posição no mundo e um questionamento do trabalho realizado, que permite que o próximo projeto se sobreponha ao anterior e, assim, se aperfeiçoe, se refine, se adapte e se proponha melhor. Um bom arquiteto compartilha este espírito critico em relação à sua obra. E é este mesmo espirito que lhes permite realizar este duro, árduo e constante trabalho, que lhes impede praticamente na totalidade dos casos de fazer interpretações que possam proporcionar a estes trabalhos uma transcendência superior à função para a qual foram construídos, que pertence a um determinado contexto físico, social e económico: uma transcendência que permita serem válidos além da sua área de influência direta.
Esta função fica em mãos do crítico.
A obra, entendida como uma intervenção, um projeto, um trajeto ou um grupo discreto de projetos de um ou mais autores, é o centro e um dos pontos de partida principais para o crítico. A confrontação deste com dita obra apresenta uma dupla condição fundamental.
Na primeira o crítico toma a atitude do artesão (de um sapateiro, por exemplo2) face à obra. É uma crítica instrumental que serve para produzir mais obra. Este nível de crítica abstrai a obra do seu contexto físico, social e económico e coloca-a em sincronia em relação a outras obras feitas noutros tempos, contextos e com outros programas, estruturas e materiais, como uma bancada de trabalho. Os trabalhos criticados são, portanto, materiais de construção, um substrato que configura ou acompanha a nova obra em forma de corpus cumulativo hierarquizado de acordo com os interesses do arquiteto. O objetivo é a confrontação positiva, o diálogo num mesmo plano entre ditas obras para conseguir, assim, um repertório de soluções, uma capacidade de resposta que permita o arquiteto projetar melhor. O resultado incorpora-se nesse magma sem atributos que forma o que poderíamos chamar de morfemas3 da arquitetura.
A segunda condição contempla tudo o que rejeita esta primeira condição e será o objeto do segundo artigo da série.