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Margaret Hedeman & Matt Kristoffersen. Art History Department to scrap survey course. Yale News (janeiro de 2020)

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Entrevista realizada por Anatxu Zabalbeascoa. Kenneth Frampton: “Los rascacielos no son arquitectura, solo dinero” . Publicado em el País Semanal (março de 2017).

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O artigo de Rushdie “The Empire Writes Back with a Vengeance”, (“O império contraescreve como vingança”), é um claro jogo de palavras com o filme “The Empire Strikes Back”, e deu origem a um livro que reúne este debate pós-colonial no mundo da literatura: Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin, The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literature, London and New York: Routledge, 1989.

Sobre a arquitetura “demasiado branca, masculina e ocidental”

Imagem: A grande Mesquita de Djenné, Mali, imagem de Ruud Zwart em Wikipédia, CC BY-SA 3.0

A história da arquitetura está sujeita a revisões constantes, mas novas formas de exame adquiriram recentemente tal importância que fazem estremecer os seus próprios alicerces.

Não há muito tempo, a Universidade de Yale anunciou que um dos seus cursos sobre história da arte era demasiado “branco, masculino e ocidental”, o suficiente para que se deva repensar completamente o seu ensino.1 O escândalo, sempre amplificado pelos tabloides, foi imediato. Mas a verdade é que os sinais do tempo e principalmente o mercado da universidade estado-unidense vive um momento de especial e contagiosa esquizofrenia. Como ensinar história da arte numa universidade onde pelo menos metade da sua clientela não encaixa nestes parâmetros? E, aprofundando mais ainda, como defender os valores do multiculturalismo quando a própria política do país que abraça estes ensinos tenta estabelecer fronteiras para evitar a riqueza e a mistura cultural que a imigração traz?

A este respeito, o historiador nonagenário Kenneth Frampton reivindicou a firme vontade de revisar a sua influente “História crítica da arquitetura moderna” com argumentos semelhantes: “Na última revisão, não quero apresentar um mundo eurocêntrico: a arquitetura de China, Índia ou África faz parte do planeta ”.2 No entanto, hoje devemos questionar se o próprio termo “regionalismo crítico” ao qual deve o seu sucesso como historiador não é um conceito intrinsecamente eurocêntrico. Ou seja, poderia tê-lo feito alguém com um senso de lugar ou cultura externos ao mundo das referências ocidentais? Deve esta descoberta, portanto, ser reconsiderada ou abandonada? A resposta é tão premente quanto problemática. Na verdade, como podemos reconstruir uma história da arquitetura ou da arte fora dos pressupostos do mundo ocidental, do branco e do masculino se, afinal, até o conceito de história da arte apareceu justamente nesse hoje sombrio ambiente? Todas estas questões surgem como ramificações do insuperável debate do “pós-colonialismo”. Mas mesmo o próprio sentimento de culpa que flutua nele é decididamente “colonial” e representa um verdadeiro problema que afeta o nosso próprio senso do passado.

Não se trata só de uma questão de pura pós-modernidade (embora muitos dos seus pensadores tenham abordado o assunto), nem sequer de método, é intrínseca ao próprio sistema e estrutura mental ocidentais. A própria tendência eurocêntrica da arquitetura que hoje é questionada nos obriga a encontrar “obras-primas” e “autores” fora do seu cânone. Um cânone subalterno acaba por ser premente. Porém, até agora no séc. XXI tem sido impossível implantá-lo no ensino de arquitetura de qualquer escola do mundo com alguma credibilidade. Por mais que surjam figuras importantes no mundo da arquitetura africana, indiana ou chinesa nesta época, a questão de saber se se podem incorporar “obras-primas” do passado provenientes desses mesmos lugares é complicada. Certamente porque a resposta seria tentar reduzir a muito ocidental e competitiva ideia de “valor” ou reformular o próprio conceito de “obra-prima“.

Penso que o dever de dar visibilidade aos círculos historicamente desfavorecidos da arquitetura está fora de questão. Isto deve ser feito. Nesse sentido, a lista de obras externos ao narcisista círculo académico ocidental deve ser construída com afinco. No entanto, o único que parece retificável é este flagrante desequilíbrio do presente e olhando para o futuro.

Quando vemos estátuas a ser demolidas em todos os lados, literal ou figurativamente, não podemos esquecer que a sua demolição só é possível hoje devido ao curso dos acontecimentos, muitos deles graças a essas mesmas estátuas, o que é perturbador e paradoxal. Porque não significa exonerar o passado das suas responsabilidades ou esquecer que o próprio passado já não nos pode responder. Talvez este nem sequer tivesse respostas.

Nesse sentido, e hoje mais do que nunca, o ensino da arquitetura encontra-se num aparente beco sem saída. Talvez a resposta só possa partir dessa arquitetura verdadeira e intimamente subalterna. Como disse o anticolonialista Salman Rushdie: “the Empire writes back with a vengeance”.3 Noutras palavras, só parecem legítimos os arquitetos que resistem e subvertem, através das suas obras, a nossa visão do passado. Só quem está longe do Pártenon ou de San Pietro in Montorio poderá transmutá-los, como já fez Césaire na literatura com as figuras de Próspero e Caliban de Shakespeare.

A questão é a seguinte: conseguiriam fazê-lo fora desse espaço intrinsecamente ligado ao Ocidente como o é o da universidade?


Texto traduzido por Inês Veiga.
Notas de página
1

Margaret Hedeman & Matt Kristoffersen. Art History Department to scrap survey course. Yale News (janeiro de 2020)

2

Entrevista realizada por Anatxu Zabalbeascoa. Kenneth Frampton: “Los rascacielos no son arquitectura, solo dinero” . Publicado em el País Semanal (março de 2017).

3

O artigo de Rushdie “The Empire Writes Back with a Vengeance”, (“O império contraescreve como vingança”), é um claro jogo de palavras com o filme “The Empire Strikes Back”, e deu origem a um livro que reúne este debate pós-colonial no mundo da literatura: Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin, The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literature, London and New York: Routledge, 1989.

Por:
Arquitecto y docente; hace convivir la divulgación y enseñanza de la arquitectura, el trabajo en su oficina y el blog 'Múltiples estrategias de arquitectura'.

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