Barcelona. Praça Urquinaona. Ausias March, Ronda Sant Pere. Fotografia do autor 16-04-2020.
Que circunstância mais curiosa e sugestiva: escrever sobre “repensar a rua” em tempo de confinamento, sem poder sair e passear por ela.
Refletir sobre usos e atividades no espaço público e sobre aonde se dirigem as novas formas de relacionamento social ou económico, quando quase “toda a sociedade está em casa” e muda radicalmente os seus hábitos de vida, simplesmente por uma questão de “sobrevivência”.
A peste bubónica. O Triunfo da Morte (1562), óleo sobre madeira de Pieter Brueghel, O Velho (1525-1569), detalhe, Museu do Prado, Madrid
A mobilidade está a mudar à mesma velocidade da nossa evolução para manter a “civilidade” nas nossas cidades.
Há uma palavra que se repete insistentemente no meu cérebro ao longo destes dias: “Não-Mobilidade”. Começa-se a falar do “direito individual e coletivo à “Não-Mobilidade”, em oposição ao direito à Mobilidade, de ter condições para desenvolver projetos vitais, pessoais e comunitários, graças à capacidade de organizar e realizar deslocações, em segurança, a custos razoáveis de tempo, energia e dinheiro.
Tentamos definir este conceito sem julgá-lo, mesmo que este signifique a antítese da socialização, que nos torna seres humanos, com vontade e necessidade de partilhar: “Os poderes públicos devem respeitar, também, os desejos e necessidades daqueles que não se querem deslocar”. De repente, as peças do puzzle mudaram radicalmente de posição. Hoje devem garantir, para defender a sobrevivência da Comunidade, a reclusão de indivíduos nos seus respetivos lares. Por que só assim, talvez, poderemos isolar o vírus COVID19 e reduzir os efeitos da sua propagação.
Neste contexto, de repente descobrimos – como coletividade e de maneira natural – problemas que ainda estavam longe das nossas práticas habituais de deslocamento.
Evolução Mobilidade COVID. Ministério Transportes.
Neste contexto, de repente descobrimos – como coletividade e de maneira natural – problemas que ainda estavam longe das nossas práticas habituais de deslocamento.
Teletrabalho, e-commerce, supervisão de deslocações na via pública, segmentação de trânsitos, ou o poder dos grandes centros geradores de deslocamentos.
Em relação ao transporte coletivo, houve uma diminuição da sua utilização na ordem dos 80/90% e 60/70% no conjunto do trânsito.
Também verificámos a redução da poluição atmosférica, simplesmente porque os carros pararam de circular. “Menos veículos, menos poluição.”
Se nos baseamos nestas constatações, talvez já estejamos a aprender, com o grande laboratório das deslocações criado pelo COVID19, maneiras de resolver a nossa futura mobilidade.
Algumas ideias sobre isto:
O uso do tempo. Estávamos acostumados a dimensionar a mobilidade com uma visão espacial. A variável ‘tempo’ só se usava para prever horários de partida e de duração do percurso ou para avaliar riscos de congestionamento. O tempo, como fator de planificação e programação da mobilidade (e das atividades que geram mobilidade), não se tinha muito em conta.
Agora é essencial. Ficámos sem tempo para nos deslocarmos e temos de compensar essa falta de tempo com uma estrita planificação do deslocamento. Oxalá esta aprendizagem traumática tenha vindo para ficar. Tempo, uma vez superada a fase de confinamento, para nos realizarmos, aproveitando melhor o tempo desperdiçado em deslocações inúteis e supérfluas!
O tempo que ganhamos também o é para reduzir as emissões de partículas e gases de efeito estufa e para poupar combustível. Seremos capazes de manter este critério optimizador de saídas quando as proibições desaparecerem?
Veículos, espaço viário e estacionamento. Descobrimos, como se se tivesse implementado uma imensa Zona de Baixa Emissão (ZBE), que, à parte dos de distribuição, de serviços essenciais e o transporte público, quase não circula mais nenhum veículo. Onde estão os carros e as motas? Nem sequer nos passeios! O que tiverem lugar de estacionamento, têm o seu veículo guardado.
Hoje, o valor de um carro não é amortizável, o que provocará reflexões futuras sobre a gestão da frota automóvel. Quando superarmos a pandemia, toda a sociedade reclamará outra política, mais equitativa e racional, de posse de veículos privados no meio urbano.
O veículo partilhável. Exigirá um esforço renovado para recuperar a confiança na sua utilização: carsharing, bicicletas ou scooters. O risco de contaminação estará presente e não será fácil convencer das supostas vantagens de partilhar um veículo com aqueles que podem não ser tão cuidadosos na sua higiene pessoal.
Autocontenção e proximidade. Aprendemos a dar valor à existência do comércio local no nosso bairro, à farmácia, à padaria, ao quiosque ou à loja que nos fornece produtos de primeira necessidade. Nos momentos em que podíamos sair, passear até o local de abastecimento foi um verdadeiro prazer. Não nos deveríamos de esquecer que estas atividades só durarão se forem rentáveis, e isso exige um pacto de equilíbrio entre benefícios e fidelização, com proteção efetiva por parte da Administração em relação a estes verdadeiros equipamentos de cidade. São um ativo urbano que não deve desaparecer.
A compra pensada. Organizar a compra e aproveitar o deslocamento para realizar outras atividades (passear o animal de estimação, despejar o lixo doméstico ou fazer exercício) é compatível. Quando saímos para fazer compras, deveríamos saber muito bem o que vamos fazer. Mais uma vez, energia que se poupa e tempo disponível! E diminuição do consumo compulsivo.
O COVID19 está a dar um forte impulso à compra eletrónica e à entrega ao domicílio. Os utilizadores apreciam o valor (e o custo associado) que tem não sair de casa para obter o que se precisa (não só mercadorias, mas também serviços).
O prático desaparecimento do “dinheiro em dinheiro”. Um hábito, pronunciado ao longo destas semanas, que se gerou foi a substituição dos pagamentos a dinheiro por transações telemáticas, através do telemóvel ou com cartão. Afetou todos os tipos de transação, incluindo o uso de passes de transporte (que saudades da Lisboa Viva!). Ser capaz de pagar ou cancelar sem contacto físico ou receber trocos, significa segurança contra uma possível infeção. O dinheiro, o valor de uma moeda, terá desaparecido em meio mundo, em poucas semanas.
Autocontenção laboral. Quem é que consegue chegar de maneira relativamente fácil ao seu local de trabalho agora? Os que vivem perto do mesmo! E em que ordem de prioridade púnhamos a localização do local de trabalho quando estudávamos ofertas de emprego há alguns meses? E isto leva a outro fator profundo de transformação. O que é que o empresário valorizará ao contratar os seus trabalhadores? Talvez poder garantir uma melhor e mais fiável acessibilidade ao local de trabalho.
O teletrabalho. Panaceia laboral descoberta graças ao COVID19. Ao final, muitíssimas atividades podem-se levar a cabo com normalidade a partir de casa. Pena que tenhamos de suportar esta praga para que os setores envolvidos tomem consciência da possibilidade.
Agora é uma questão de a saber gerir. Por que as implicações, se conseguirmos manter o modelo, podem ser enormes, também em termos de mobilidade.
Isto representará uma redução significativa no “consumo estável de espaço físico” para atividades profissionais que não requerem presença física, que podem ser destinados a outras iniciativas empresariais, com o qual o mercado de escritórios e locais comerciais pode ser altamente afetado.
O mesmo pode acontecer com a oferta de serviços complementares a ditas atividades (estacionamentos, redes de transporte público, compras quotidianas…) e com as utilities ligadas às atividades dominantes (informática, serviços de transporte expresso, reprografia …).
Muitos serviços deverão readaptar-se (não desaparecer, apenas transformar-se e continuar a oferecer criação de valor) para que se possam desenvolver de uma maneira diferente (as origens e os destinos variarão e as redes de deslocação também).
As condições de mobilidade laboral, para o coletivo de teletrabalhadores, supõem uma mudança radical em relação aos parâmetros habitualmente utilizados nos estudos de procura. Geraremos um segmento de mobilidade laboral mais aleatório e do qual será mais difícil prever o comportamento, até que boas práticas se estabeleçam.
A planificação dos serviços de mobilidade ver-se-á, sem dúvida, afetado por estas mudanças, adotadas para tentar vencer a pandemia, com o menor número possível de afetados.
Passámos anos a estudar os efeitos que as atividades no ambiente urbano produziam na mobilidade e como a maneira e a função do espaço urbano determinam certos modelos de mobilidade, oscilam porque surgem novas variáveis, novas possibilidades e novas necessidades, que devemos analisar após esta fase crítica, para avaliar o lado positivo que a experiência do COVID19 pode nos trazer.
Barcelona, Praça Urquinaona. Junqueres, Trafalgar. Fotografia do autor 16-04-2020.