
Two Faces, desenhado por John Romita Jr. para All-Star Batman #1 “My Own Worst Enemy” (2016), pág. 22. Pintura de Danny Miki, côr de Dean White. Fragmento. © DC Comics
Estamos acostumados a prestar homenagem aos nossos heróis, aos arquitetos que influenciaram positivamente a nossa maneira de entender a arquitetura. Mesmo a nível historiográfico, definimos uma categoria para nos referirmos criticamente a alguns deles, àqueles ligados a uma “arquitetura heroica” que lançou as bases da modernidade. Mas a nossa disciplina também está repleta de influentes vilões aos quais também deveríamos brindar merecidos honores.
Não me refiro àqueles indivíduos que nos envergonham, arquitetos que antes se identificavam com a máxima pureza geométrico-cromática e, com o tempo, passaram a fazê-lo pelas suas desprezíveis perversões. Ou a esses lobos em pele de cordeiro que, cegos pelo poder outorgado por um suposto império germânico, esqueceram a sua juventude progressista e abraçaram o horror. Nem sequer àqueles que pensam que uma arquitetura pode ser admirável mesmo estando sustentada pela exploração económica e laboral. Não, não merecem ser considerados vilões, mas sim, simplesmente, encarnações de males que deveriam ser erradicados da nossa disciplina caso queiramos continuar a sentir orgulho do que esta representa.
Os nossos vilões são aqueles que cada um de nós elege, muitas vezes inconscientemente, para atribuir-lhes a condição de anti-heróis arquitetónicos ou, pelo menos, da nossa maneira de entender a arquitetura. Ocasionalmente são pessoas próximas, mas anónimas, mas geralmente escolhemos aqueles que já adquiriram a condição de supervilões, que se assemelham mais a personagens que a pessoas, e que, tal como na BD, tornaram-se mais reconhecíveis pelas suas extravagâncias do que pelas suas realizações: o vilão calvo (escolham à vontade) que nega desde o seu privilegiado pedestal a existência de arquitetos starsupervilão; O aprendiz de Mr. Freeze, que pretende realizar cidades tão monumentais, frias e brancas como as montanhas que rodeiam a sua residência (fiscal); o avançado discípulo de Riddler que abisma o mundo com a sua capacidade de desmontar, politicamente, móveis suecos de nomes impronunciáveis; o vilão local que disfarça a sua capa, enrolando-a à volta do pescoço;…

Jack Hawksmoor aka. “The god of cities”. Ilustração de Fiona Staples para Wildstorm: A Celebration of 25 Years (2017). Fragmento. © DC Comics
Face ao indesejável malvado, os vilões são necessários. Cumprem uma função essencial na arquitetura: a de ser a Némesis que permite a existência do herói. Foram muitos os que tentaram redefinir a arquitetura a partir da identificação do seu particular vilão, desde Philip Johnson ao enfatizar a sua rivalidade com Frank Lloyd Wright1, a Jane Jacobs lutando para evitar que Robert Moses transformasse irreversivelmente a cidade de Nova Iorque, passando por Vincent Scully, elevando a Walter Gropius à categoria de inimigo público pelo edifício Pan Am2, ou Robert Venturi, quando se enfrenta ao mais poderoso grupo de supervilões, o dos arquitetos do Movimento Moderno.
Os nossos estimados vilões também tornam possível uma espécie de catarse coletiva e pessoal, que nos libera da frustração inerente ao inevitável confronto entre o que gostaríamos de ser e o que realmente somos. São o espelho distorcido que permite ver-nos não como simples arquitetos, mas como heróis defensores da arquitetura. Embora nunca devamos esquecer, parafraseando a Two Faces, que, se não morrermos como verdadeiros heróis, corremos o risco de viver o suficiente para nos vermos a nós próprios convertidos em vilões.
Texto traduzido por Inês Veiga.